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Marcela Elisa

[Diário de quarentena] O feminismo de quem pendura roupa

(Texto publicado originalmente em 1 de junho de 2020)

Toda vez que lavo as roupas do Chico, fico sorrindo para os tamanhicos das peças. Vocês já pegaram na mão uma camisetinha destas? É de fazer desacreditar que existem pessoas deste tamanho. Risos. Sempre há aquela peça ou outra que me faz lembrar de quem deu, em que ocasião, o que significa, quantos meses tinha Francisco. Um varal de roupa daria um ótimo álbum ou uma biografia daqueles que as veste.

A Chará, uma amiga chamada Marcela (claro!), nos enviou esta camiseta preta pelo correio. Veio de Araraquara direto para os confins da Cachoeirinha. Nota-se que falo “nos enviou” porque, claramente, considerei um presente a mim direcionado também. Quando li os dizeres “com mãe feminista eu não cresço machista”, me inundei. Criar meu filho como feminista é um dos quesitos número 1 para mim. Equipara-se com cria-lo como humanista.


Há muito tempo fui impactada pelo feminismo, no sentido de pensar sobre e, principalmente, de entender que o poder estava no questionamento do que eu via. “Será que sempre foi assim? e Será que precisa continuar sendo assim?” são as duas perguntas que aparecem com frequência. Tanto em meus devaneios como em meus argumentos em conversas desafiadoras mundo afora.


Entretanto, fui pega pelo vento da pandemia e toda racionalidade se desarrumou. Na medida em que percebia a efemeridade e, ao mesmo tempo, a profundidade que se revelam nas “coisas como são”, tudo mudava para mim, no entanto, ainda sob bastante confusão e muito aprendizado para que eu pudesse me olhar como feminista de verdade. Porque eu quero ser feminista de verdade, entende? E com esse descamar na procura do que é ser algo “de verdade”, encontrei a maternidade me esperando, com todo seu teor biológico, instintivo e tantos outros inegáveis.

Desde que a quarentena se instalou, passamos por várias fases aqui em casa. No começo foi tudo desordem e novidade, o que era vantagem e desvantagem juntos. Depois se tornou pânico e aquele sentimento de “vai ficar tudo bem”. Agora, posso dizer que estamos em algo do tipo: lavar louça, lavar roupa, regar as plantas, fazer comida e cuidar do chico (vezes mil).


Nesse sentido, percebi um troço tão arraigado, que me intrigou. Dos mais frequentes desentendimentos com o Pedro, a falta de tempo para que eu possa criar (escrever, trabalhar, ler) é um dos motivos principais. Eu acreditei por algum tempo que esse tipo de situação era, nitidamente, uma falha rasgada do machismo instaurado. Não que não seja. Afinal de contas, os cuidados com uma criança é dever de toda uma rede de adultos que a circundam. Homens e mulheres. E as estatísticas também dizem: o trabalho mental das mulheres é maior que o dos homens, são milhões de crianças sem registros dos seus pais nas certidões de nascimento e outras demonstrações de que há, sim, um sistema que privilegia pais-homens (principalmente em oportunidades de trabalho) do que mães-mulheres. Eu diria que há preconceitos com relação às mães no que tange seu retorno à vida pessoal e profissional depois de ter seus filhos no colo.


Todavia, quero falar aqui do que sinto junto com esse despautério machista. Voltemos à quarentena. Apesar do meu trabalho ter sido sugado pelo confinamento imposto, já que meu exercício remunerado era ser comunicadora de estabelecimentos que, agora, estão fechados, mesmo se tivesse conseguido manter todos os clientes que havia conquistado, talvez estivesse em maus bocados por falta de tempo.


Cuidar do Francisco em quase 100% das vinte e quatro horas do dia é trabalho para não sobrar tempo nem sequer para ler uma página de algum livro. Esta é a minha situação, é claro. A do Pedro é diferente. Pedro tem seu escritório fora da casa e quando precisa entregar algum trabalho, se tranca lá dentro e só sai quando termina. No meu caso, meu escritório era para ser o quarto do Chico, então além da minha mesa de trabalho, também tem um guarda-roupa com tudo o que é nosso e fica a dois passos da sala, o que dificulta bastante minha concentração quando tenho meu menininho me chamando o dia todo.


Foi aí, nesse imbróglio, que resolvi ceder. Na verdade, resolvi me render. Rendição, é a palavra. Me rendi à maternidade por completo, entendendo que agora Francisco precisa de mim afetiva e biologicamente talvez. Me rendi a não ter tempo para deitar-me na rede e ler minhas poesias. Me rendi aos questionamentos se isso está certo ou errado, se é fruto do patriarcado ou se é uma necessidade.


A pergunta pela equanimidade dos papéis que Pedro e eu exercemos na sociedade e em nossa vida particular, principalmente sobre machismo e feminismo ainda ressoam. E ao lado destas perguntas, vivo o dia-a-dia com a percepção de que não pretendo mudar nada agora. Sigo pendurando as roupinhas, dando comida e brincando com o Chico na certeza de que esse é meu papel neste momento, mesmo que esteja revelando um suposto desequilíbrio notado, claramente, na cultura patriarcal em que vivemos.


A propósito, estas palavras estão sendo escritas às onze da noite, depois que todos foram dormir e, enfim, tenho as horas só para mim. Dizem que é melhor trabalhar no silêncio da noite. Eu o faço por não ter escolha diferente. Ainda.

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