Natalie Rodrigues (@naty_sres), 34 anos, mãe do Artur de 5 anos, nos conta um pouco dos desafios do dia-a-dia de uma família negra.
MM - O que é ser mãe? É um equilibrar de pratos diário e uma sensação de que nunca vai ser só a Natalie pela Natalie. É sempre a Natalie pelo Artur. O fim não está mais em mim. Eu e meu marido fizemos um “meio”. Sempre fui uma pessoa bastante egoísta, sinceramente. Comecei a mudar um pouco depois que eu tive meu filho. E a partir daí, não consigo mais fazer nada se não for pensando no outro, e o outro não é só no meu filho. Você se torna mais sensível às coisas. Não dá pra ser mãe e não ser uma pessoa mais empática e sensível com as pessoas. É uma responsabilidade gigantesca que te faz acordar todo dia e pensar: "Não vou dar conta. Porque eu me enfiei nisso? Por que eu não tomei anticoncepcional?".
Mas ao mesmo tempo, você olha para o seu filho e fala: "gente, como ele é perfeito!".
Fiquei bastante assustada quando me vi mãe, principalmente no puerpério e na licença maternidade. Quando fiquei sozinha, eu pensei: "gente, como ninguém nunca falou que era assim?" Foi horrível. Eu sabia que não ia ser fácil. Tem as dores e os amores. Mas os amores são maiores...
Para tentar resumir e sem romantizar as coisas: eu sempre procuro colocar peso nas coisas. Primeiro vem sempre aquele fardo gigantesco, mas quando vem realmente o que é ser mãe das nossas crianças, não tem nem comparação! Quando colocamos na balança o amor por eles, a balança não se equilibra. Eu sou uma pessoa melhor por causa dele!
MM - O que representa ser mãe negra em nossa sociedade?
Pela minha experiência e de outras mulheres ao meu redor, além de ser uma descoberta diária como mãe, percebi que eu vivia numa bolha com várias camadas. Com o crescimento dele, eu que acreditava que a questão do racismo estava muito bem resolvida pra mim, principalmente após minha transição capilar, eu me pego diariamente pensando sobre como será a vida do meu filho na sociedade racista como a que vivemos hoje. Eu lembro da imagem, de um dia em que eu estava indo trabalhar e eu tive a sensação de quase reviver uma situação em que eu passei com meu marido. Estávamos namorando ainda, ele estava dirigindo o carro que era da minha mãe, próximo ao shopping Westplaza, e fomos parados por policiais. Um dos policiais me abordou, enquanto o outro abordava meu marido pedindo os documentos dele e do carro e o policial me perguntou: "Você está bem?". Eu respondi: "Estou!", e ele perguntou: "Você conhece esse cara?". Eu falei: "Conheço, é meu noivo/namorado!". E então, nesse dia, indo para o trabalho, senti um peso muito grande, e eu pensei: "O Artur! Ele vai passar por isso!". E eu chorei...
Existem diferentes preocupações e situações para a mãe de uma menina negra ou menino negro. Eu procuro fazer os paralelos da minha infância, da minha mãe comigo e com a minha irmã e avaliar as coisas que meu marido me fala da infância dele. Eu ouvia muito, sem conseguir compreender, histórias do meu marido, porque o racismo acontece de formas diferentes para homens e pra mulheres, para meninos e pra meninas. A maternidade negra requer muita atenção...
A gente, enquanto menina negra, passa por situações que dão a falsa sensação e conotação de bulling, porque você é "feinha", você não é o estereótipo, você tem que sempre se destacar por alguma outra característica porque você é diferente das outras meninas. E enquanto menino negro, a preocupação é que, com o passar dos anos, seu filho não vai estar mais na idade de ser o "bonitinho", o "fofinho". Daqui a pouco ele vai ser um alvo potencial de situações cruéis da sociedade e da polícia também (independentemente da sua posição social).
MM - Além de tudo que uma mãe qualquer tem que se preocupar, o que está no pensamento diário de uma mãe negra? Como você trata o racismo com seu filho?
É uma preocupação diária em como vamos abordar esse tema delicado com uma criança. Temos que falar, mas temos que ter o tato de como falar. E, mesmo assim, não adianta só pensar como vamos falar, porque isso não vai impedir que nossos filhos passem por situações, como o meu já passou. É um dia-a-dia de tentar pensar como você vai criar seu filho pra se proteger de uma estrutura que não vai deixa-lo sair ileso. E como você vai dizer isso numa linguagem infantil? Como você vai tratar de um assunto que machuca, que é duro, de uma forma lúdica, leve? Às vezes é impossível você não repassar a gravidade do assunto para criança. Recentemente, fomos questionados pelo próprio Artur. O assunto está em todos os lugares. Não conseguimos conter o acesso até mesmo de uma criança. A palavra racismo está em evidência. Eles ouvem, eles absorvem! Precisamos de estrutura psicológica, sensibilidade, força... Meu marido explicou algumas coisas sobre racismo e o Artur começou a chorar. De alguma forma, ele compreendeu que pessoas estavam sendo mortas por serem quem são.
Nossa função como mãe e como pai é fortalecer a identidade, a autoestima é, naquelas nuances, naquelas entrelinhas, sempre reforçar: "você é lindo", "você é inteligente". Eu sei que isso é muito importante para todas as crianças e que a maioria das mães e pais o fazem. Mas aqui tem que ser muito mais forte, muito mais enfático. É muito complexo. É difícil. É torcer pra que, lá na frente, isso seja uma base gigantesca pra que ele olhe e lembre, em qualquer situação: "Alguém já me falou que eu não preciso me preocupar com isso dessa maneira e posso seguir em frente, usar isso de escada".
MM - Você já procurou algum tipo de ajuda especializada sobre como educar uma criança negra?
Não. Nunca tive curiosidade de procurar também. Mas o movimento negro é muito forte e muito unido. A gente se "aquilomba", e nesse meio de gente preta encontramos ajuda e apoio, mesmo de pessoas desconhecidas. Eu e meu marido nos preocupamos em fazer nosso processo de terapia com terapeutas negros, porque eu não consigo tratar minhas questões com alguém pra quem eu precise ensinar como é se sentir negra. Se não é de forma direta, de forma indireta, temos ajuda.
MM - Você já vivenciou alguma situação de racismo com seu filho? Se sim, como você reagiu?
Com ele, presencialmente, não percebi, porque a gente trabalha com esse negócio, como eu falei, tem coisa que a gente não percebe assim como meu marido não percebeu a abordagem do policial. Mas teve uma situação que veio através do meu filho, na escola. Foi a primeira abordagem mais incisiva e mais direta que a gente teve que ter sobre o assunto. As vezes pode ser uma coisa muito sutil, vocês vão ver, é uma coisa muito sutil: ele foi pedir pra jogar bola e falaram assim pra ele "não, você não vai jogar porque você é marrom".
MM - Não parece nada sutil, desculpa, não é sutil.
É que quem ouve e não tem qualquer tipo de abertura pra entender, vai falar assim: "Ah que bonitinho, marrom, foi tão fofo!” Ou: “Ah, é uma criança!". É nesse nível, ouvimos de tudo!
A gente tenta, como falei, dar leveza nas coisas. A abordagem foi do meu marido e ele foi muito feliz: "Olha aqui, olha um jogo de futebol. Quem são os melhores jogadores do mundo? Olha como são parecidos com você! Provavelmente, ele não queria você jogando porque sabia que você ia colocar ele no chinelo!". Tem que tentar sair por uma tangente num primeiro momento. Mas, a partir dessa situação real, pra mim ficou claro que se escancarou uma porta. Começou.... Ele tinha 4 anos na época. E eu achei que até demorou!
MM - O que revolta é outra criança ter, na idade dele, esse pensamento. Como outra criança pensou isso? De onde que essa criança tirou isso?
A gente percebe que a escola, conscientemente, racionalmente, como instituição, não é preparada pra falar sobre o racismo e pra tratar o racismo. Primeiro, porque meu filho estuda numa escola particular. Quantas crianças negras tem acesso a essa escola? O assunto não se torna “necessário”. Tivemos sorte que, na escola do Artur, no primeiro ano dele, a professora era negra. Ela falou, pessoalmente pra gente, que ficou muito feliz de ter uma criança preta na turma porque ela conseguiu trabalhar isso nas crianças com atividades diretas. O livro "Menina bonita do laço de fita", da Ana Maria Machado, eu conheci por conta dessa professora e ela fez uma atividade abordando tanto a questão de gênero quanto a questão racial.
Respondendo a pergunta de vocês "como essa criança chegou nisso?":
O respeito não é obrigação da escola. É nossa função ensinar respeito para os nossos filhos. Aquela história que tem muito pai e mãe que terceiriza o serviço deles pra escola é nesse sentido também.
Onde as crianças absorvem as coisas primeiramente? Em casa! Então, a resposta é: reprodução! Essa criança ouviu esse tipo de linguagem, com essa entonação, inclusive, em algum lugar do meio dele. Não dá pra exigir que a escola cubra uma lacuna que vem da falta de educação e de respeito das famílias e das pessoas. A gente precisa se preocupar com o que a gente fala, da forma como fala. Criamos espelhos e reflexos nossos. Leiam isso com todo peso da responsabilidade que há nessa frase...
MM - A miscigenação é uma realidade. Pra você, há diferença em ser mãe branca de prole negra?
Muita. Muita. Eu sempre preferi homens negros. Não tive muitos relacionamentos, meu marido foi meu primeiro namorado, casamos, enfim... E isso foi providencial, na minha opinião. Hoje eu vejo que isso torna algumas coisas menos complexas. Tanto pro meu filho quanto pra gente também. Pensem, fazendo um paralelo, parceiros que tem religiões diferentes e que a religião é um ponto relevante em suas vidas. Como vão conciliar isso pra educar a criança? Alguém vai ter que ceder ou, então, a criança vai ficar sem rumo nesse sentido.
Nós temos muitas ressalvas quanto aos relacionamentos inter-raciais. Existem muitos desdobramentos da questão racial dentro do “item” relacionamento (o colorismo – os vários tons da pele negra, a solidão da mulher preta – somos a base, quase que invisível de uma pirâmide social, a sexualização dos corpos pretos, etc.).
De forma mais direta e prática, é difícil pra uma mãe branca lidar com situações raciais. Eu cito o exemplo da Samara Felippo, que teve um relacionamento com um homem preto e teve duas filhas com ele. As meninas, indiscutivelmente, são negras. E ela teve uma dificuldade prática (e que ela faz questão de assumir): "Como vou arrumar o cabelo das minhas filhas?". Ela não sabia. O despertar e as bolhas que eu, Natalie, tive que estourar e que foram “mais fáceis” para serem identificadas por mim, pra uma mãe branca, talvez demore muito mais tempo. E esse postergar do despertar de uma mãe branca de crianças pretas pode ter um reflexo que fragilize ainda mais a criança na percepção dela como indivíduo e como negro dentro da sociedade. Além da normalização natural dos brancos em determinadas ocasiões como, por exemplo, a que meu filho passou. Eu acho muito complicado.
MM - De certa forma, eu vejo as mães brancas com uma responsabilidade ainda maior porque elas escolheram...
Concordo em partes. Quando você pensa que a responsabilidade dela é maior porque foi uma escolha, sim, mas vamos um passo atrás... Será que ela já tinha em mente que, quando tivesse um filho, ele seria negro? Será que todo mundo pensa nisso? Na sociedade que vivemos hoje, a maternidade é quase sempre uma surpresa! Eu planejei ser mãe mas, grande parte, não. Quando essa mãe vai perceber com o que vai ter que lidar, talvez seja muito tarde.
Para nós, negros, a escolha do relacionamento afetivo implica em, quando se há filhos, indiretamente imputar, na criança, uma série de responsabilidades que nós mesmos ainda estamos tentando lidar e resolver! Uma criança nascida de um relacionamento inter-racial, também tem uma problemática de auto reconhecimento, pertencimento...
MM - Não sei porque, mas realmente eu vejo negros que não assumem uma identidade de que "eu sou negro e isso é bom". A estrutura estabelecida pelo racismo na sociedade dificulta muito. Eu vim de uma realidade privilegiada, porque eu sempre estudei em escola particular e fiz faculdade particular também. Mesmo com privilégios, isso me distanciou, algumas vezes, de consolidar a minha identidade racial. Isso é fato. Só que eu acredito que o negro que não tenta transpor a barreira relacionada à identidade, fortalece os discursos dos racistas e dificulta quebras dessa estrutura nociva que se formou há séculos e se solidificou ao longo dos anos. Se reconhecer é difícil, muitas vezes, doloroso. De certa forma, negar-se preto, deslegitima o problema do racismo e a causa de equidade racial.
MM - O que é respeito?
Respeito pra mim é não concordar, mas tentar entender. Olhar para o outro e, mesmo com dificuldades de compreender sua dor ou seu posicionamento, você se dispor a ouvir e apoiar quando for o caso. Eu tento muito fazer muito esse exercício. Nem sempre eu consigo, mas me calo quando percebo que não vou agregar. O termo respeito está muito vinculado às causas do que chamamos de “minorias” e há um termo que vem sendo disseminado e que eu acho muito interessante para substitui-lo que é "minorizados". Os negros são maioria no Brasil. Então, não somos minoria, mas somos minorizados por conta de uma questão histórica de injustiça e exclusão. Na mesma linha, outros grupos, mesmo que não sendo maioria, são minorizados, diminuídos e excluídos pois não há respeito. Quando a causa não é nossa, não temos ideia de qual é o sofrimento e a luta do outro. Não dá pra falar de respeito se eu, preta, só levanto a minha bandeira contra o racismo mas ainda desprezo a dor do outro, faço piadas de mau gosto com a sexualidade de outras pessoas, por exemplo... Respeito requer aprendizado constante e em como a sua atitude, ou a falta dela, impacta na existência da outra pessoa.
MM - O que uma mãe amiga negra falaria para uma mãe amiga branca?
Sendo minha amiga e se tratando dos sentimentos do meu filho, a minha fala não pode ser tão doce e amena. Nós, negros, podemos ajudar para que os brancos compreendam como ser antirracista. Mas quem não se demonstrar empático e disponível, não pode esperar que tenhamos uma posição de subserviência. Não dá mais, não dá mais pra se omitir. Eu vou ensinar pro meu filho a vida como ela é, até porque preciso prepará-lo pra um mundo que ainda tem muito a caminhar para evoluir. Mas não dá pra eu fazer a minha parte e os demais ficarem parados. Nós, negros, temos feito, por séculos, a nossa parte. E muito bem-feita, inclusive.
Me incomoda quando as pessoas tentam normalizar e não tocar nas feridas. A falácia de que somos todos iguais me deixa inconformada. Encarem que é ótimo que sejamos pessoas totalmente diferentes, que a gente discuta e que cada um tenha a sua personalidade. Isso é ótimo. A diversidade também mora aí, diversidade não é só racial. Mas encarem também que não somos todos iguais porque eu não tenho a mesma possibilidade que você tem, meu filho não tem o mesmo privilégio que os filhos de vocês vão ter, então, vamos tratar as coisas como elas são. Vamos encarar os fatos como eles são.
Resumiria em uma frase do humorista, negro, Yuri Marçal que diz: “ensine o seu filho branco a ser antirracista, porque estamos ensinando os nossos a resistir.”
MM - Quer deixar alguma mensagem para todos?
Que cada um, dentro da sua responsabilidade, abra espaço para ouvir alguém diferente de você e exercite a empatia. Usem suas posições de privilégio, para ampliar a fala e a causa dos minorizados. Existem pessoas realmente interessadas em apoiar aqueles que buscam ampliar sua visão de mundo, a ajudar a direcionar alguns caminhos pra que o legado para os nossos filhos seja mais amplo, mais diverso e mais equânime. Ainda levará muito tempo pra que haja equilíbrio, mas estejam disponíveis pra que os pontos de partida estejam mais nivelados a cada geração. Mães brancas, ajudem pra que as mães pretas não permaneçam fazendo um trabalho solo, mas que todas juntas tenhamos sucesso com nossas crianças.
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